Black Mirror, inabilidades sociais e vício em video games #1
Formato: Série
Ano: 2011
País de Origem: Reino Unido
Roteiro: Charlie Brooker
Produtora: Channel 4/Netflix
Eu lembro como se fosse ontem o dia em que
descobri os jogos de video game. Eu tinha por volta de 8 anos, estávamos na era
do Super Nintendo e foi com Mortal Kombat 3 que entrei em um mundo fantástico
de apenas 16 bits. Quem não gostou muito dessa história toda foi minha mãe –
que ao descobrir que eu tinha descoberto os games
me deu um baita puxão de orelha e foi logo dizendo que não queria ver o filho
dela viciado nesse bendito brinquedo.
A preocupação com o vício em jogos eletrônicos
esteve presente na sociedade desde que os primeiros consoles e fliperamas
apareceram. Mas, nas últimas semanas, o assunto ganhou novo fôlego quando certa
notícia veio à tona: A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente
o vício em games como um distúrbio
mental. Isso implica dizer que a nova edição do CID (Classificação
Internacional de Doenças) irá incluir o problema sob o nome de “distúrbio de
games”. O público consumidor de jogos eletrônicos não demorou a se manifestar e
logo surgiram comentários pela internet: “Tudo vira doença agora”, “Se jogar
video game é doença, pode me internar”, “Quer dizer que toda vez que sair um
jogo novo eu posso pedir um atestado pra faltar ao trabalho?”.
Quase ao mesmo tempo, a internet foi tomada por
uma onda de agitação devido a uma outra novidade: a estreia da quarta temporada
de Black Mirror, uma das séries mais
assistidas dos últimos anos. E, coincidência ou não, o primeiro episódio da
nova temporada fala sobre nada mais nada menos que... jogos de video game! Isso
é muito Black Mirror, não é mesmo? Mas para entender todo esse rebuliço recente
envolvendo seriados futuristas, jogos e doenças, precisamos compreender o que é
vício e psicopatologia na perspectiva da AC.
A julgar pelos
comentários que circularam nas redes sociais sobre a decisão da OMS, é possível
perceber que o senso comum ainda tem uma percepção sobre psicopatologia voltada
para o aspecto médico, psiquiátrico, concebendo o que chamam de “distúrbios
mentais” dentro de uma lógica saúde/doença. Para a Análise do Comportamento, no
entanto, a coisa é bastante diferente. Por mais que analistas do comportamento
possam recorrer a manuais como CID e DSM (Manual Diagnóstico Estatístico de
Transtornos Mentais) a título de consulta, o que interessa mais para a
perspectiva analítico-comportamental é a análise
funcional do comportamento. Isso porque tudo é comportamento, tudo mesmo,
desde um simples piscar de olho, o apertar de um botão ou uma alucinação
esquizofrênica. E todo comportamento é fruto do tripé filogênese, ontogênese e cultura. A filogênese diz respeito a
comportamentos que herdamos enquanto espécie ao longo do processo evolutivo
humano e a fatores genéticos que adquirimos hereditariamente; a ontogênese tem
relação com a história de vida de cada sujeito, que é singular e dotada de
diversas e complexas variáveis. A cultura, por sua vez, exerce influência sobre
os indivíduos ao modelar comportamentos de acordo com cada contexto social e
grupal no qual eles se inserem.
Entendendo essa estrutura básica, a Análise do
Comportamento vai investigar qual é a função
do comportamento em questão. Sim, pois todo e qualquer comportamento se mantém
em função das consequências que ele recebe. Por mais “anormal” que um
comportamento seja, ele só existe e se mantém porque de alguma maneira ele
funciona para o sujeito que o apresenta. Nessa perspectiva até mesmo os
“distúrbios mentais” e vícios existem em função de algum ganho ou eliminação de
aversivos para a pessoa que se comporta como uma jogadora compulsiva, por
exemplo. O ponto aqui é que uma pessoa com algum comportamento dito como
“anormal” não se resume a uma mera lista de “problemas” que devem ser
imediatamente catalogados e “curados” com internação e medicamentos, é preciso
entender funcionalmente como os comportamentos foram instalados e mantidos na
pessoa, para que uma intervenção terapêutica e, se necessário, medicamentosa,
seja realizada em conjunto. Por outro lado, isso não significa que o vício em games não exista.
A base do vício tem relação com o sistema de
recompensa do nosso cérebro. Esse sistema é ativado quando emitimos
comportamentos ligados à sobrevivência ou reprodução. Por exemplo: quando
passamos horas ou dias trabalhando e recebemos dinheiro ao final da tarefa;
quando gastamos tempo e esforço investindo na(o) crush e somos correspondidos sexualmente. Tudo isso faz com que
nosso cérebro, especificamente uma região chamada de núcleo accumbens, seja inundado de dopamina – o
hormônio do prazer. Assim, a tendência é que executemos novamente no futuro as
ações que em outro momento foram responsáveis por ativar nosso mecanismo de
recompensa. Por isso voltamos a trabalhar em troca de dinheiro ou a paquerar em
troca de recompensas sexuais, pois nosso cérebro “aprendeu” que tais
comportamentos geram muito prazer. E cá pra nós, quem não gosta de sentir
prazer? Acontece que o tiro pode sair pela culatra. E até mesmo algo gostoso
como o mel não pode ser obtido sem algumas picadas de abelha.
Com o passar dos anos a nossa sociedade foi
capaz de construir e descobrir diversas formas de ativar nosso mecanismo de
recompensa com muito menos esforço e pela mesma dose ou mais de dopamina. Mais
prazer com menos trabalho, isso parece bom, não é mesmo? Não necessariamente. À
medida que nosso núcleo accumbens recebe
altas cargas de dopamina o cérebro tente voltar a um estado de equilíbrio, pois
até dopamina em excesso não é saudável para ele. Dessa forma, o cérebro tenta
reestabelecer seu equilíbrio químico de duas formas: diminuindo a produção de
dopamina ou aumentando o número de receptores dopaminérgicos. Como
consequência, vai se tornando cada vez mais difícil sentir o mesmo prazer com
as mesmas coisas de antes, por isso o “viciado” precisa de doses cada vez
maiores da sua “droga”. Note que que coloquei os termos entre aspas, justamente
porque esse processo neuroquímico não acontece apenas no cérebro de dependentes
químicos, mas sim em todos nós. E pasmem: é possível se viciar em praticamente
qualquer coisa – inclusive em jogos eletrônicos.
Alguns dos critérios que a 11ª versão do CID
utilizará para diagnosticar o vício em games
são: não ter controle de frequência, intensidade e duração com que a pessoa
joga videogame; priorizar jogar videogame a outras atividades; continuar ou
aumentar ainda mais a frequência com que a pessoa joga videogame, mesmo após
ter tido consequências negativas desse hábito. Algumas dessas características
são encontradas no protagonista de USS
Callister, o primeiro episódio da quarta temporada de Black Mirror.
A história narra a rotina de Robert Daly,
programador e co-criador de um jogo de imersão virtual onde o jogador é
transportado para um universo repleto de aventuras espaciais. Tão genial quanto
solitário, Robert passa os dias em seu trabalho sendo humilhado e contrariado
por seus colegas. Sem conseguir revidar às provocações, ele acaba se isolando
em seu escritório. Quando chega em seu apartamento, à noite, o humilhado
funcionário entra em uma versão particular do jogo que criou. Nesse jogo,
Robert inseriu personagens que são cópias dos seus colegas de trabalho. Ao
contrário da vida real, no jogo todos eles são submissos a Robert, que lidera a
nave USS Callister com mão de ferro. Do lado de fora, Robert Daly é um sujeito
pacato e cabisbaixo, que não levanta a voz para ninguém e sofre calado. Dentro
do jogo, ele é o comandante onipotente, que esbofeteia e estrangula seu chefe
(apenas um subordinado no jogo) e que figura como um garanhão que conquista
todas as mulheres da tripulação (embora na vida real não tenha nenhum
relacionamento amoroso).
É possível notar que Robert possui uma série de inabilidades sociais, não sabendo lidar
com situações aversivas do seu dia a dia, tampouco como superá-las. Ao invés de
construir repertórios comportamentais de enfrentamento, a fim de modificar as
situações incômodas do seu ambiente de trabalho, Robert se esquiva dos
problemas. Seu comportamento passivo é então reforçado negativamente, pois ao
se calar, o protagonista retira os aversivos do seu ambiente, isto é: os
colegas de trabalho acabam parando de provoca-lo, mesmo que temporariamente. Ao
não retrucar os ataques, ele também evita que eles se prolonguem. Assim, o
padrão comportamental de passividade de Robert é reforçado e ele aprende, mesmo
que erroneamente, que ficando quieto e sem revidar os problemas desaparecerão.
A curto prazo essa estratégia até pode funcionar, mas de forma duradoura o não
enfrentamento dessas situações trazem uma série de prejuízos para o personagem
e os problemas voltam em dobro. Ao invés de treinar repostas às situações de
zombaria e humilhação em seu ambiente real, Robert “se refugia” e se vinga
dentro do jogo de todos aqueles que o magoaram, porém o faz de uma forma
irreal, que não encontra aplicabilidade no cotidiano de sua vida profissional.
Utilizando uma analogia com o game Need for Speed, um popular jogo de
corrida: não adianta saber dirigir carros no jogo para aprender a dirigir
carros no mundo real, é preciso treinar a condução de carros no mundo real.
O enunciado acima parece óbvio e desnecessário,
mas essa pode ser uma diferença básica entre aquelas pessoas que utilizam os
jogos como forma de lazer e passatempo e aquelas que fazem seu usufruto de
forma não saudável. Este último é o caso de Robert, que no episódio de Black
Mirror apresenta as características elencadas pela OMS como indicadores de que
existem prejuízos no modo como ele lida com os games. Robert joga de forma diária e compulsiva; passa a maior
parte de seu horário noturno imerso no jogo, deixando de lado outras atividades
e evitando interação social real; de dia, ele tem lapsos de atenção e perde
muito tempo pensando no jogo ao invés de se concentrar em seu ambiente real;
além disso, apesar de alguns prejuízos que ele recebe (como a descoberta de que
está clonando os funcionários da empresa para manipulá-los cruelmente no jogo),
continua jogando.
A história de Robert é um caso particular. E
como foi dito no início do texto, é preciso analisar funcionalmente cada caso
em suas especificidades, analisando suas contingências. Por isso, é importante
salientar que não se pode generalizar a problemática do vício em games como se todos que jogassem fossem
viciados. Ao mesmo tempo, é verdade que existem jogadores que possuem problemas
com o comportamento de jogar em excesso, mas existem formas específicas para
lidar com esse problema, para além da internação e da medicação.
Muitos jogos estão sendo usados para ajudar as
pessoas: em tratamentos de idosos com Parkinson, nos consultórios de
fisioterapeutas e no desenvolvimento de habilidades de crianças com transtorno
do espectro do autismo. Além disso, é muito divertido jogar uma partidinha de
Street Fighter ou Call of Duty com os amigos, vamos admitir! É importante,
porém, encarar com sabedoria e coragem a mais difícil de todas as quests, o jogo da vida, especialmente em
suas fases mais difíceis, lembrando que sempre haverá um bônus stage aguardando por nós. E que o apertar das mãos das
pessoas que amamos nunca seja substituído pelo apertar de botões de um controle
de video game.
Elton SDL
Se
é pop, a gente analisa!
REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA
MOREIRA, M. B. MEDEIROS, C. A. de. Princípios
básicos de análise do comportamento. Porto Alegre: Artmed, 2007.
BRITTO, I. A. G. S. (2012). Psicopatologia e
análise do comportamento: algumas reflexões.
PRADO, R. C. P. (2013). Uma leitura
analítico-comportamental da psicopatologia. Scientia, 1(2), 192-395.
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