Black Mirror e as armadilhas do prazer imediato #3
Obra: Black Mirror
Formato: Série
Ano: 2011
País de Origem: Reino Unido
Roteiro: Charlie Brooker
Produtora: Channel 4/Netflix
Ano: 2011
País de Origem: Reino Unido
Roteiro: Charlie Brooker
Produtora: Channel 4/Netflix
São 6:30 da manhã e você deveria ter acordado
às 6:00. Você está perfeitamente consciente de que chegará atrasado para seu trabalho
às 7:00. Ou talvez não! Meio sonolento e ainda na cama você calcula que se tomar
banho mas não o café (ou vice-versa), conseguirá economizar tempo e se livrará
do atraso. Tudo parece certo até que seu celular, ao lado da cama, vibra bruscamente.
Dezenas de notificações pipocam na tela, são 6:32 mas você não resiste... só
uma olhadinha não faz mal. Entre ouvir os áudios da(o) crush e umas partidas de Candy
Crush mais quinze minutos se passam e você percebe que não apenas vai
chegar atrasado no emprego mas também vai levar uma baita bronca do chefe.
Se você se identificou com o quadro acima, não
entre em pânico (mas quem diabos ainda joga Candy
Crush hoje em dia?)! Passar por situações como essas são mais comuns do que
se imagina. São as chamadas Armadilhas
de Reforço, e caímos nelas mais vezes do que gostaríamos. Elas estão
naquela dieta que não conseguimos continuar ou sequer começar, naquela série
que não conseguimos parar de maratonar ou naquele texto da AcPop que não
paramos de ler (neste último caso, continue à vontade).
É bem sabido que o reforço é um tipo de consequência
que ocorre após a emissão de um dado comportamento
em um certo contexto. Quanto mais
imediato for o reforço após a emissão do comportamento, mais chances o reforço
tem de ser eficaz, fazendo assim com que o comportamento reforçado tenha mais
chances de acontecer no futuro em contextos similares. Complicado? Simples? Em
ambos os casos, permita-me exemplificar. Se você acordar às 6:30 da manhã e
ligar o wi-fi do seu celular imediatamente e, se logo em seguida você receber
mensagens de alguém que você está paquerando, é muito provável que no dia
seguinte você ative novamente o wi-fi às 6:30. E se receber novamente as
mensagens da sua cara metade e se isso se repetir por mais e mais dias ao longo
da semana, é extremamente possível que você conecte a internet sempre nesse
horário, assim que acordar. Mas se você executasse o mesmo comportamento às
6:30 da matina e não recebesse nenhuma mensagem, nem sequer um gif de bom dia
das suas tias no grupo da família, muito provavelmente você não ativaria o
wi-fi nesse horário (supondo que não houvesse nenhum outro reforçador em jogo a
não ser as mensagens). Dizemos então que o comportamento de ligar o wi-fi às 6:30 ao acordar é
reforçado pelo recebimento de mensagens da namorada ou do namorado,
paquera, ficante e afins. Mas, e se como no exemplo acima esse comportamento,
apesar de gerar ótimos reforços amorosos também gerasse consequências ruins,
como por exemplo, chegar atrasado no trabalho e levar bronca do chefe?
As armadilhas de reforço consistem em contingências
de reforço que são bastante prazerosas a curto prazo, mas que possuem
características punitivas e danosas a longo prazo. Um fumante inveterado pode
muito bem saber que terá câncer se não parar de fumar, mas as sensações
orgânicas de prazer, relaxamento e eventuais reforços sociais imediatos podem
parecer prioridade para ele. Tal armadilha está presente, de outro modo, no episódio Nosedive, da temporada 3 da série Black Mirror.
O episódio Nosedive
mostra um mundo no qual tudo é feito com base em avalições que as pessoas
recebem umas das outras por meio de um aplicativo de celular. As notas são
computadas de 0 a 5,0. Quanto mais pontos você tiver, mais vantagens você pode
adquirir: descontos em compras, viagens e consumos em geral. Para receber cada
vez mais pontos você precisa ser avaliado positivamente pelas pessoas ao seu
redor. É possível receber tais avaliações por meio de postagens nas redes
sociais, através de prestação de serviços ou apenas sendo simpático e gentil
com um desconhecido ou com um vendedor no meio da rua.
Lacie, a protagonista do episódio, deseja
comprar uma casa nova com um bom desconto, e para isso ela precisa de uma média
de avaliação maior. É nesse ponto que ela começa a postar mais conteúdo em suas
páginas na internet, mesmo que para isso precise fingir situações que não são
reais, forjando momentos e alegrias que não estão realmente presentes. É como
se toda a vida dela passasse a ter um grande filtro rosa do instagram, apenas
em troca de mais avaliações positivas. Lacie começa também a tratar as pessoas
que encontra com uma simpatia exagerada, beirando à forçação de barra (alô
Sniffy!) e ao caricato.
Mesmo que a curto prazo os comportamentos de
Lacie gerem reforços agradáveis, como mais pontos, mais status e mais popularidade, o preço disso vem cobrado em dobro:
envolta em um mundo de superficialidades, Lacie também sofre por se comportar
de modo extremamente superficial e pouco assertivo, tendo que se submeter a
situações adversas e humilhantes apenas para sustentar a pose. A longo prazo
ela visualiza conseguir a pontuação necessária para comprar sua tão sonhada
casa, mas não percebe que tudo que consegue na verdade é frustração – uma resposta
emocional ligada a consequências punitivas.
Com um simples apertar de botão, do conforto de
nosso sofá, conseguimos prazer e alegria de forma instantânea, construindo uma
reputação e um mundo que muitas vezes não corresponde à nossa realidade. Por
mais confortável que isso seja, até que ponto estamos deixando de desenvolver
habilidades reais para atuar no mundo real? Quanto tempo e oportunidade
perdemos para edificar coisas concretas, realizar experiências verdadeiras que
talvez demorem mais para acontecer e tenham um custo mais alto de esforço, mas
que no fim serão não apenas reforçadoras, mas também fortalecedoras?
As armadilhas de reforço estão espalhadas a
todo momento, em todo lugar. Desenvolver autocontrole e disciplina requer um
esforço diário. Que sejamos, então, menos como a protagonista de Black Mirror e
mais como a personagem de Kill Bill. Porque...
Se é pop, a gente analisa!
Elton SDL
REFERÊNCIAS E LEITURA COMPLEMENTAR
BAUM, W. M. Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. Porto Alegre: Artmed, 1999.
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